A cultura Hip Hop emergiu na década de 70, das periferias de Nova Iorque, num cenário onde as comunidades enfrentavam graves problemas de ordem social como a pobreza, a violência, o racismo, a carência de infraestrutura e de educação, entre outros. Os jovens encontravam nas ruas o único espaço de lazer e geralmente entravam num sistema de gangues, nas quais confrontavam entre si violentamente, na luta pelo domínio territorial. As pessoas que moravam naquelas comunidades, já tão problemáticas, viviam num clima de tensão, por medo dos confrontos, e estavam sempre atentas aos territórios e as regras que regiam as áreas sob o domínio dos gangsters. Nesse contexto, várias manifestações artísticas nasciam. Oficialmente, o Hip Hop foi criado por Afrika Bombaataa. Nascido e criado no bairro do Bronx, Kevin Donadon, como é seu nome de batismo, foi quem estabeleceu os quatro pilares dessa cultura: o Rap, o Djing, o Breakdance e o graffiti. Os DJs Afrika Bambaataa, Kool Herc e Grand Master Flash, GrandWizard Theodore, GrandMixer DST (hoje DXT), Hollywood e Pete Jones, entre outros, observaram e participaram destas expressões de rua, e começaram a organizar festas nas quais estas manifestações tinham espaço. A partir dessa proposta, os gangsters transferiram a rivalidade que tinham uns com os outros para aquelas novas artes e começaram a frequentar estes eventos, não mais para competirem com armas, mas com passos de break.
Se nós observarmos atentamente, é possível fazer uma alusão entre os guetos de Nova Iorque, na década de 70, e o atual momento de Ilhéus. A situação produzida pela sucessão de desastres políticos caminha para o caos. Seja na ausência de políticas voltadas à juventude, expressa, por exemplo, na falta de diálogo deste governo sobre assuntos de interesse desse segmento, como a reforma da Pista de Skate, que, mesmo deteriorada, continua sendo ponto de encontro dos jovens, mesmo com a presença, muitas vezes intimidatória, da polícia militar. Seja na falta de boa vontade dos políticos em sequer discutir o projeto passe livre estudantil. Seja nos números, cada vez mais altos, de assaltos nas redondezas da Avenida Canavieiras, local que possui um conglomerado de 7 escolas. Seja na guerra entre os raios A e B, que está rachando a cidade no meio.
Num quadro bem parecido, uma nova erupção no movimento Hip Hop acontece na cidade, reescrevendo as linhas da conhecida história. Inicialmente, reunindo dezenas de pessoas com o Sagacidade Urbana, que acontecia no Point do Estudante, sobre o qual escreverei com mais propriedade em outra oportunidade. Posteriormente com o Consciência Alternativa, na Tenda, e o mais novo destes projetos, o Rap da Rua, que sai dos ambientes fechados e leva o rap de volta para casa: a rua.
Este último, sem dúvidas, é umas das iniciativas de maior potencial de revolução nessa cidade. Isso por que deixa-se a zona de conforto dos ambientes fechados para ocupar os espaços urbanos, que historicamente sempre foram palcos das grandes manifestações e protestos. Aqui, definitivamente, o objetivo principal não é o entretenimento, já que numa situação de conflitos entre raios, os MCs do rap tem a petulância de permear as barreiras impostas pela violência, levando a ideologia da paz para as suas comunidades e tentando conscientizar as pessoas de que o povo oprimido não deve em hipótese alguma reproduzir a opressão. A guerra entre favelas não faz sentido, já que o nosso inimigo é o sistema - como se diz no universo do rap - que produz desigualdades sociais e a divisão. Pelejar entre si, só os enfraquece e deixa o inimigo forte. Abre brechas para ações policiais violentas e para a atuação oportunista de milícias, basta observar o que já acontece nas médias e grandes cidades.
E os meninos do rap tem propriedade para fazer isso. Afinal, são eles os que mais conhecem essa situação. São eles que estão assistindo os seus amigos de infância tendo suas vidas ceifadas. São eles que vivenciam as mazelas, o racismo, a opressão e a tensão em suas comunidades, e, desde quando se entenderam por gente, tiveram que aprender a lutar contra tudo isso e hoje se utilizam como porta-vozes de suas "quebradas". Isso não se aprende em universidade nenhuma, mas na prática das experiências cotidianas.
Me lembro que, quando eu era criança, eu e minha família morávamos numa área irregular, onde hoje é o bairro do São Domingos. A maioria daquelas pessoas viviam em situação precária por que não tinham para onde ir. Mas ainda assim os impiedosos tratores do então prefeito Jabes Ribeiro ameaçavam derrubar os nossos barracos. Me lembro de termos travado batalhas tensas contra aquelas máquinas, que se projetavam contra a corrente humana montada em frente às casas, mas a união dos moradores sempre era maior do que a opressão. A partir daquele momento aprendi contra o que estávamos lutando.
Vejo o movimento Hip Hop, agora com o projeto Rap da Rua, que, mesmo embrionário, já está ganhando forma, como o elo que faltava para reestabelecer a paz nas favelas. Principalmente por que o estilo musical é a identidade do gueto. Os MCs tem legitimidade para isso por que, enquanto as condições que lhes foram impostas tentaram os empurrar para a marginalidade e a criminalidade, eles escolheram o papel, a caneta e a revolução. Em conversas com os mais entusiasmados, percebe-se uma vontade quase que visceral de fazer história e entre eles já é quase um consenso de que a prioridade principal, nesse momento, é acabar com a guerra entre os raios e sarar as chagas abertas por ela. Eles já começam a concentrar as suas produções nesse tema. Os rappers tem vontade, e isso é nobre, mas precisam do abraço da população, dos movimentos sociais e de todos que tem interesse na paz em Ilhéus, para tal proeza. Como diria o rasta MC Leo Carlos, que nasceu e se criou no bairro da Liberdade, em Salvador: a nossa revolução será "violentamente pacífica".
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Christian de Jesus (CJ) é músico, estudante do curso de História da Universidade Estadual de Santa Cruz, membro do Coletivo Rap de Rua e escreve para o Internauta Alternativo.
Este texto contou com a revisão dos MCs Pawlista Faccionário, do grupo Poesia de Favela, e Curtis, do grupo Cientistas do Flow.